Vou “reinaugurar” o blog falando de um cara. Um cara que não é famoso, então você muito provavelmente nunca ouviu falar dele. Ele não tem uma página na Wikipédia, mas eu acho que deveria. Porque eu considero a história da vida dele uma das melhores que eu já ouvi falar. Então, lá vai:
Esse cara nasceu em Espírito Santo, mas se considera paulista porque se mudou para São Paulo antes de aprender a soletrar E-S-P-Í-R-I-T-O S-A-N-T-O. O pai desse cara era neto de um judeu e a mãe dele cuidava da casa, ele nunca teve nenhum bicho de estimação e cresceu ouvindo músicas dos anos 60 — mesmo que o pai dele fosse fã de música clássica.
Quando
tinha sete anos, esse cara foi obrigado a aprender a tocar piano. Ele largou as
aulas um ano depois e fez um acordo com o pai: trocaria o piano por um teclado
(o que andava longe de ser a mesma coisa — e ao mesmo tempo parecia a mesma
coisa. Pra ele. Enfim, fato é que os dois instrumentos tinham teclas. O pai
desse cara fingiu que fazia sentido). Ele não curtiu também as aulas de teclado,
porém não desistiu. Não porque queria agradar o pai e, sim, porque era teimoso
e não queria ser vencido por um monte de teclas (como até hoje ele se refere ao
instrumento piano/teclado).
Aliás,
esse cara de quem eu estou falando odiava perder. Adorava discutir. E amava
provar que estava certo.
Aos
doze anos, ele quase foi expulso do colégio em que estudava. Motivo: disse que
o professor deveria se sentar no lugar dele e tentar aprender alguma coisa com
os alunos, não o contrário. Virou lenda para os colegas de turma. Não foi
expulso por isso. Só foi convidado a se retirar. O que anda longe de ser a
mesma coisa — e ao mesmo tempo parecia a mesma coisa. Pra todo mundo. O pai
desse cara disse que estava muito decepcionado com o filho (o que era, sim, verdade,
mas ele também estava orgulhoso, só que não disse essa última parte a ninguém).
O cara
foi transferido para uma escola militar. E ele, para a surpresa de todos,
adorava estudar lá. E o que era para ser punição, segundo o mesmo, virou uma
das melhores experiências da vida dele. Foi ali que ele descobriu o que queria
fazer da vida. Mas vamos deixar pra falar dessa parte mais para frente.
O problema é que na escola militar
que esse cara estudava não tinha Ensino Médio (que, naquela época, era chamado
de segundo grau). E, como ele não queria entrar para o exército — e cortar o
cabelo e morar no Haiti e nunca ir pra guerra —, também não fazia sentido ele
se mudar para outra escola militar. Sendo assim, ele teve que ir para outro
colégio... Até hoje ele não sabe se foi a melhor ou a pior coisa que ele fez da
vida dele.
Era um
colégio tradicional da zona sul, mensalidade caríssima, pessoas intragáveis.
Foi lá que esse cara teve a primeira namorada, foi lá que ele paquerou uma
professora, foi numa festa de lá que ele fumou o primeiro baseado, pegou a
namorada do melhor amigo, entrou numa briga, se esqueceu de voltar pra casa no
dia seguinte. Foi lá também que ele viu o quanto o mundo era realmente uma
merda e que ele estaria fodido se não fizesse nada pra mudar. Bom, o mundo não
mudou, já adianto, mas ele tentou.
Formou
uma banda de rock alternativo com outros quatro caras e batizou-a de
Subterrâneo (na época eles achavam que era um nome legal). O baixista da banda
era péssimo, mas a namorada dele fazia um boquete daóra, então tava tudo certo.
Eles tocavam nas festas que só quem não era esnobe ia. O salário era um
saquinho de maconha. De vez em quando colava uma grana de verdade. De vez em
quando alguma patricinha metida a Cult (sim, já existia naquela época) dava pra
todo mundo da banda.
Na
real, a banda desse cara era péssima. Eles faziam alguns covers dos Beatles e
emendavam com algumas músicas do Sex Pistols. A mistura era terrível, mas
ninguém estava ligando muito. O cara deduziu que era porque todo mundo estava
chapado demais para reclamar — inclusive ele.
Dormia
em todas as aulas do colégio, mas não ia mal em nenhuma matéria. Foi assim até
o terceiro ano. E até aquela altura do campeonato ele não sabia se a vida dele
era uma merda ou se era boa de verdade. Também não havia conseguido mudar o
mundo.
Numa
noite, a Subterrâneo (a banda desse cara) estava tocando na casa de um cara
esquisito que todo mundo conhecia. O nome dele era Guilherme, mas todo mundo
chamava ele de Vitor e ninguém sabia o porque disso. Então, estavam todos lá na
casa do Vitor, uns meio bêbados e a maioria já chapada, e esse cara resolveu
inovar e começar a tocar uma música que ele tinha escutado na rádio no dia
anterior. Chamava Faroeste Caboclo e
ninguém sabia cantar direito.
Era da
Legião Urbana e o vocalista fazia uma péssima imitação da voz do Renato Russo.
Lá pela quarta estrofe, ninguém ligava mais pra música. Nem a banda. O
vocalista abandonou o microfone pra beber e o baixista estava muito ocupado
tentando ver onde a namorada dele tinha se enfiado — ou enfiado a boca. O
guitarrista tava mais pra lá do que pra cá, e o baterista não sabia o ritmo da
canção direito. Então só dava pra ouvir direito o som do teclado e, como já foi
dito, ninguém estava prestando atenção.
Mas
esse cara continuou mesmo assim. E, quando acabou, ele emendou outra da Legião.
E mais outra. E, quando viu, já tinha tocado a fita inteira (sim, fita!) que
tinha em casa. Levantou a cabeça na última música. Era Eduardo e Monica e essa
todo mundo sabia cantar. Mas poucos estavam acordados para entender a melodia
então a letra não fazia sentido nenhum. Uns estavam na parte em que o Eduardo
abriu os olhos, mas não quis se levantar, outros na parte em que o filhinho do
Eduardo ficou de recuperação.
E o
cara novamente não ligou e continuou tocando. Quando estava na metade da
canção, levantou a cabeça e percebeu uma loirinha no canto, que ele nunca tinha
visto. Era a única que estava no tempo certo da música. Ela olhou pra ele, e
ele olhou pra ela, e o Eduardo tinha passado no vestibular.
Foi
falar com ela um tempo depois, mas ela nem deu bola pra ele. Era do segundo
ano, falava pouco, não sabia beber e era fã de Legião Urbana. Não foi amor à
primeira vista. O cara ficou com outra garota naquela noite, levou essa garota
pra casa (dele) e esqueceu da loirinha da festa. Ela não esqueceu dele, acho,
considerando os próximos acontecimentos.
Houve
mais festas e em nenhuma delas o cara percebeu a loirinha olhando pra ele.
Notou-a uma vez no colégio, enquanto ela conversava com as amigas, de saiazinha
toda comportada. O cara achava que ela era metidinha, mas ficou interessado.
Chamou
pra sair. Ela disse que não. Mais tarde ela contou a ele o motivo: soube por
uma amiga de uma amiga de outra amiga dela que ele, o cara, tinha saído com uma
garota da sala dela e que ele tinha sido um idiota. Uma história meio assim. No
fim, a loirinha acabou saindo com ele. E saiu mais uma vez. E outra. E o pai
dela não gostou. O avô dela (um velho muito bravo), muito menos.
Esse
cara de quem eu estou falando tinha uma péssima reputação. Além de fumar
maconha, ter uma “bandinha de drogados”, dormir nas aulas e brincar com as
filhas alheias, ele ainda vinha de família judia. Na verdade, a última pessoa
seguir a religião na família dele foi o bisavô e esse já tinha batido as botas
há tempos. Só que o avô da loirinha pouco se importava com esse detalhe.
Eles
tiveram que namorar escondido. E tava tudo muito bem, muito bom. O cara estava
se formando e ele já sabia o que queria fazer da vida: Direito. Que ironia, né?
Direito... Tudo o que ele não era.
Muito pelo contrário: era todo errado. Fazia tudo errado. Vivia em pé de guerra
com a loirinha (porque ele amava discutir e ela era osso duro de roer), ficou
uns tempos sem falar com o pai e também parou de ir as aulas.
Mas
estava tudo indo bem, por incrível que pareça. A vida aparentava ser boa. Muito
boa. E ele estava aproveitando os últimos dias de adolescente problemático. No
ano seguinte, ele iria embora pra outra cidade, moraria numa república com um
monte de gente estranha, fumaria mais maconha, abriria mais livros. A vida
seria boa.
Só que
então ele levou uma sacudida da vida. E ela disse pra ele: “Acorda, que o mundo
não cabe na palma da tua mão!”. Os tempos de escola já tinham terminado e esse
cara conseguiu passar no vestibular. Primeira chamada da Federal. O pai, pela primeira vez, mostrou o quando era orgulhoso
dele. Voltaram a se falar. E ele foi pra republica de gente esquisita, fumar
maconha e abrir livros.
Mas
voltou meses depois pra ficar com a loirinha que ele tinha deixado grávida
chorando no aeroporto. Ê, vida! Teve que casar com ela, era o jeito. Porque o
avô da loirinha era italiano e, lá na terra dele foi ensinado que, quando você
engravida a filha dos outros, você tem que casar com ela. E também porque o pai
desse cara sempre disse pra ele que um homem de verdade assume suas
responsabilidades. E, nesses dois pontos, tanto a família judia quanto a
italiana concordavam.
Casaram.
O cara pediu transferência de universidade e não foi para a república de gente
esquisita, fumar maconha e abrir livros. Foi abrir uma conta no banco,
trabalhar, estudar e ser pai.
A vida
era uma montanha-russa naquela época. A loirinha chorava todo dia porque ela
era menina de família e estava grávida no ensino médio num colégio de gente
esnobe. O cara fazia tudo o que podia, mas ele ainda não tinha descoberto
nenhum superpoder, apesar de nas propagandas dizerem que todo pai é um
super-herói.
Mas ele
iria ser pai e tinha só dezenove — quase vinte. E tinha que trabalhar, estudar,
por comida na mesa e pagar as parcelas do apartamento. O cara pirou. Pirou de
verdade. Ele e a loirinha começaram a brigar pra valer (porque ele adorava
discutir e iria ser advogado; e ela era osso duro de roer e estava grávida).
Tudo virou um caos. Tinha dias que eles nem se falavam.
Foi
nessa época que eu conheci os dois. E eu era todo problemático e dei um monte
de trabalho, mas eles gostaram de mim. Sei lá por que. Eles até voltaram a se
falar por minha causa e um dia o cara virou pra mim e disse:
— Acho que eu posso segurar, sim, o mundo na palma da minha
mão, tô te segurando, rapaz!
E eu
não entendi nada naquela época, mas eu ri mesmo assim e pedi pra ele trocar de
canal porque eu queria assistir desenho. E ele cantava Beatles pra mim toda
noite e me disse pra ter cuidado com a filha dos outros.
Um dia
esse cara começou a falar sobre como ele me achava um cara legal e o quanto ele
gostava de mim por isso. Disse que sempre iria querer ficar perto de mim e que,
se eu precisasse de alguma coisa, era só chamar que ele viria. E que eu sempre
poderia ligar para ele, a qualquer hora, pra brigar, pra conversar ou pra
perguntar sobre algum CD.
Eu
também não entendi nada na época. Tinha três anos e tudo parecia
brincadeirinha. Mas naquele dia não foi de brincadeirinha. O cara saiu para
trabalhar, como sempre ia, e a noite eu fiquei esperando para assistir desenho
come ele, como sempre ficava.
Perguntei
pra Laís (a mulher que cuidava de mim na época) se ele iria demorar muito pra
chegar. Ela disse que não. Estava
mentindo. Ele demorou pra voltar e, na verdade, não voltou. E a minha mãe
me dizia que iria ficar tudo bem, mas eu não queria que nada ficasse bem, só
queria que meu pai voltasse pra casa. Não tinha graça pegar o controle e mudar
pro canal de desenhos na hora do jogo do Brasil, se ele não estivesse lá para
reclamar. Não tinha graça ouvir Beatles. Nada tinha graça.
E eu
não entendia muita coisa. Não entendia porque tinha que ir aos fins de semana
ficar com o meu pai no novo apartamento dele se nós já tínhamos um apartamento
e a minha mãe estava lá. Não fazia sentido. Nunca fez.
Mas eu
cresci e entendi algumas coisas. E dei muito trabalho no processo. Mas o cara
cumpriu a promessa: ele sempre está lá do outro lado da linha quando preciso. E
às vezes ele enche o saco quando se mete demais na minha vida. Mas eu sei que
ele só faz isso porque quer que eu siga por um caminho melhor do que o dele —
um com menos dificuldades e tudo mais, acho.
E ele
uma vez me disse que nunca se arrependeu de ter voltado para casa e ter sido
meu pai. Disse que eu fui uma das melhores pessoas que ele conheceu. Eu e os Beatles.
No fim
da história, o cara se casou com uma morena bonita do trabalho dele. O nome
dela é Mari. Ela não leva jeito com crianças, não sabe lavar roupa ou cozinhar,
mas é uma boa pessoa. É feminista e também adora discutir, mas ela e esse cara
se dão bem.
A Mari
nunca quis ter filhos, mas ela não tem nada contra os enteados. Ela não gosta
de criança, então nunca me tratou como criança, nem quando eu era uma criança.
Meu pai também nunca fez isso. Eles têm um jeito de educar meio estranho, mas
deu certo, acho.
Se eu
quisesse ficar acordado até tarde, sem problemas. Mas eu tinha que levantar
junto com eles no dia seguinte e ajudar a Mari a não gastar todo o sabão de uma
vez na máquina (porque ela nunca sabe quando a medida está boa) e fazer meus
deveres da escola. Tudo era assim. Resumindo, eu poderia fazer tudo o que uma
criança queria, mas tinha que assumir a responsabilidade depois — como um adulto.
Dureza. Virava um anjo nos fins de semana. Minha mãe não entendia nada.
E às
vezes eu fico pensando em como as coisas seriam se esse cara nunca tivesse
levantado a cabeça e visto a loirinha no canto. Será que ele teria ido pra
Federal, virado poeta e mudado o mundo? Ou será que, de um jeito ou de outro,
ele seria exatamente o que é hoje?
E a
loirinha? Será que ela teria se apaixonado por outro cara que tocasse Legião
Urbana? Será que ela não precisaria provar tantas coisas pra um monte de gente
tão nova?
Não
sei, cara. Talvez isso acontecesse, talvez não. Mas a história desse cara é
essa. Tá certo que eu deixei de fora um monte de coisas, mas a essência é essa daí . Quero desejar pra ele um feliz
aniversário e dizer que eu tenho muito orgulho de ser filho dele. E que eu
estou feliz por ele ter voltado e ter sido meu pai.
que pai massa! *-*
ResponderExcluirEi skatista! Olha eu aqui de novo. Já tava com saudades de você cara. Adorei a história, como sempre, você sempre sabe nos envolver e cativar. A história é linda eu meio que imaginei que fosse seu pai. E não sei porque mas quando cheguei ao final já estava me debruçando em lágrimas. Talvez seja porque tô muito emocional hoje, sei la, sou mulher! Enfim fico feliz que tenha voltado. É muito bom tê-lo de volta. Beijos da garota que adora os skatistas. Não se esqueceu de mim não né? Te cuida cara.
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