segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Uma história que não está na Wikipédia (mas que deveria!)


           Vou “reinaugurar” o blog falando de um cara. Um cara que não é famoso, então você muito provavelmente nunca ouviu falar dele. Ele não tem uma página na Wikipédia, mas eu acho que deveria. Porque eu considero a história da vida dele uma das melhores que eu já ouvi falar. Então, lá vai:

            Esse cara nasceu em Espírito Santo, mas se considera paulista porque se mudou para São Paulo antes de aprender a soletrar E-S-P-Í-R-I-T-O S-A-N-T-O. O pai desse cara era neto de um judeu e a mãe dele cuidava da casa, ele nunca teve nenhum bicho de estimação e cresceu ouvindo músicas dos anos 60 — mesmo que o pai dele fosse fã de música clássica.


                Quando tinha sete anos, esse cara foi obrigado a aprender a tocar piano. Ele largou as aulas um ano depois e fez um acordo com o pai: trocaria o piano por um teclado (o que andava longe de ser a mesma coisa — e ao mesmo tempo parecia a mesma coisa. Pra ele. Enfim, fato é que os dois instrumentos tinham teclas. O pai desse cara fingiu que fazia sentido). Ele não curtiu também as aulas de teclado, porém não desistiu. Não porque queria agradar o pai e, sim, porque era teimoso e não queria ser vencido por um monte de teclas (como até hoje ele se refere ao instrumento piano/teclado).




                Aliás, esse cara de quem eu estou falando odiava perder. Adorava discutir. E amava provar que estava certo.


                Aos doze anos, ele quase foi expulso do colégio em que estudava. Motivo: disse que o professor deveria se sentar no lugar dele e tentar aprender alguma coisa com os alunos, não o contrário. Virou lenda para os colegas de turma. Não foi expulso por isso. Só foi convidado a se retirar. O que anda longe de ser a mesma coisa — e ao mesmo tempo parecia a mesma coisa. Pra todo mundo. O pai desse cara disse que estava muito decepcionado com o filho (o que era, sim, verdade, mas ele também estava orgulhoso, só que não disse essa última parte a ninguém).


                O cara foi transferido para uma escola militar. E ele, para a surpresa de todos, adorava estudar lá. E o que era para ser punição, segundo o mesmo, virou uma das melhores experiências da vida dele. Foi ali que ele descobriu o que queria fazer da vida. Mas vamos deixar pra falar dessa parte mais para frente.



               
                O problema é que na escola militar que esse cara estudava não tinha Ensino Médio (que, naquela época, era chamado de segundo grau). E, como ele não queria entrar para o exército — e cortar o cabelo e morar no Haiti e nunca ir pra guerra —, também não fazia sentido ele se mudar para outra escola militar. Sendo assim, ele teve que ir para outro colégio... Até hoje ele não sabe se foi a melhor ou a pior coisa que ele fez da vida dele.


                Era um colégio tradicional da zona sul, mensalidade caríssima, pessoas intragáveis. Foi lá que esse cara teve a primeira namorada, foi lá que ele paquerou uma professora, foi numa festa de lá que ele fumou o primeiro baseado, pegou a namorada do melhor amigo, entrou numa briga, se esqueceu de voltar pra casa no dia seguinte. Foi lá também que ele viu o quanto o mundo era realmente uma merda e que ele estaria fodido se não fizesse nada pra mudar. Bom, o mundo não mudou, já adianto, mas ele tentou.


                Formou uma banda de rock alternativo com outros quatro caras e batizou-a de Subterrâneo (na época eles achavam que era um nome legal). O baixista da banda era péssimo, mas a namorada dele fazia um boquete daóra, então tava tudo certo. Eles tocavam nas festas que só quem não era esnobe ia. O salário era um saquinho de maconha. De vez em quando colava uma grana de verdade. De vez em quando alguma patricinha metida a Cult (sim, já existia naquela época) dava pra todo mundo da banda.




                Na real, a banda desse cara era péssima. Eles faziam alguns covers dos Beatles e emendavam com algumas músicas do Sex Pistols. A mistura era terrível, mas ninguém estava ligando muito. O cara deduziu que era porque todo mundo estava chapado demais para reclamar — inclusive ele.


                Dormia em todas as aulas do colégio, mas não ia mal em nenhuma matéria. Foi assim até o terceiro ano. E até aquela altura do campeonato ele não sabia se a vida dele era uma merda ou se era boa de verdade. Também não havia conseguido mudar o mundo.


                Numa noite, a Subterrâneo (a banda desse cara) estava tocando na casa de um cara esquisito que todo mundo conhecia. O nome dele era Guilherme, mas todo mundo chamava ele de Vitor e ninguém sabia o porque disso. Então, estavam todos lá na casa do Vitor, uns meio bêbados e a maioria já chapada, e esse cara resolveu inovar e começar a tocar uma música que ele tinha escutado na rádio no dia anterior. Chamava Faroeste Caboclo e ninguém sabia cantar direito.


                Era da Legião Urbana e o vocalista fazia uma péssima imitação da voz do Renato Russo. Lá pela quarta estrofe, ninguém ligava mais pra música. Nem a banda. O vocalista abandonou o microfone pra beber e o baixista estava muito ocupado tentando ver onde a namorada dele tinha se enfiado — ou enfiado a boca. O guitarrista tava mais pra lá do que pra cá, e o baterista não sabia o ritmo da canção direito. Então só dava pra ouvir direito o som do teclado e, como já foi dito, ninguém estava prestando atenção.


                Mas esse cara continuou mesmo assim. E, quando acabou, ele emendou outra da Legião. E mais outra. E, quando viu, já tinha tocado a fita inteira (sim, fita!) que tinha em casa. Levantou a cabeça na última música. Era Eduardo e Monica e essa todo mundo sabia cantar. Mas poucos estavam acordados para entender a melodia então a letra não fazia sentido nenhum. Uns estavam na parte em que o Eduardo abriu os olhos, mas não quis se levantar, outros na parte em que o filhinho do Eduardo ficou de recuperação.


                E o cara novamente não ligou e continuou tocando. Quando estava na metade da canção, levantou a cabeça e percebeu uma loirinha no canto, que ele nunca tinha visto. Era a única que estava no tempo certo da música. Ela olhou pra ele, e ele olhou pra ela, e o Eduardo tinha passado no vestibular.


                Foi falar com ela um tempo depois, mas ela nem deu bola pra ele. Era do segundo ano, falava pouco, não sabia beber e era fã de Legião Urbana. Não foi amor à primeira vista. O cara ficou com outra garota naquela noite, levou essa garota pra casa (dele) e esqueceu da loirinha da festa. Ela não esqueceu dele, acho, considerando os próximos acontecimentos.


                Houve mais festas e em nenhuma delas o cara percebeu a loirinha olhando pra ele. Notou-a uma vez no colégio, enquanto ela conversava com as amigas, de saiazinha toda comportada. O cara achava que ela era metidinha, mas ficou interessado.


                Chamou pra sair. Ela disse que não. Mais tarde ela contou a ele o motivo: soube por uma amiga de uma amiga de outra amiga dela que ele, o cara, tinha saído com uma garota da sala dela e que ele tinha sido um idiota. Uma história meio assim. No fim, a loirinha acabou saindo com ele. E saiu mais uma vez. E outra. E o pai dela não gostou. O avô dela (um velho muito bravo), muito menos.


                Esse cara de quem eu estou falando tinha uma péssima reputação. Além de fumar maconha, ter uma “bandinha de drogados”, dormir nas aulas e brincar com as filhas alheias, ele ainda vinha de família judia. Na verdade, a última pessoa seguir a religião na família dele foi o bisavô e esse já tinha batido as botas há tempos. Só que o avô da loirinha pouco se importava com esse detalhe.


                Eles tiveram que namorar escondido. E tava tudo muito bem, muito bom. O cara estava se formando e ele já sabia o que queria fazer da vida: Direito. Que ironia, né? Direito... Tudo o que ele não era. Muito pelo contrário: era todo errado. Fazia tudo errado. Vivia em pé de guerra com a loirinha (porque ele amava discutir e ela era osso duro de roer), ficou uns tempos sem falar com o pai e também parou de ir as aulas.


                Mas estava tudo indo bem, por incrível que pareça. A vida aparentava ser boa. Muito boa. E ele estava aproveitando os últimos dias de adolescente problemático. No ano seguinte, ele iria embora pra outra cidade, moraria numa república com um monte de gente estranha, fumaria mais maconha, abriria mais livros. A vida seria boa.
              Só que então ele levou uma sacudida da vida. E ela disse pra ele: “Acorda, que o mundo não cabe na palma da tua mão!”. Os tempos de escola já tinham terminado e esse cara conseguiu passar no vestibular. Primeira chamada da Federal. O pai, pela primeira vez, mostrou o quando era orgulhoso dele. Voltaram a se falar. E ele foi pra republica de gente esquisita, fumar maconha e abrir livros.


                Mas voltou meses depois pra ficar com a loirinha que ele tinha deixado grávida chorando no aeroporto. Ê, vida! Teve que casar com ela, era o jeito. Porque o avô da loirinha era italiano e, lá na terra dele foi ensinado que, quando você engravida a filha dos outros, você tem que casar com ela. E também porque o pai desse cara sempre disse pra ele que um homem de verdade assume suas responsabilidades. E, nesses dois pontos, tanto a família judia quanto a italiana concordavam.


                Casaram. O cara pediu transferência de universidade e não foi para a república de gente esquisita, fumar maconha e abrir livros. Foi abrir uma conta no banco, trabalhar, estudar e ser pai.


                A vida era uma montanha-russa naquela época. A loirinha chorava todo dia porque ela era menina de família e estava grávida no ensino médio num colégio de gente esnobe. O cara fazia tudo o que podia, mas ele ainda não tinha descoberto nenhum superpoder, apesar de nas propagandas dizerem que todo pai é um super-herói.




                Mas ele iria ser pai e tinha só dezenove — quase vinte. E tinha que trabalhar, estudar, por comida na mesa e pagar as parcelas do apartamento. O cara pirou. Pirou de verdade. Ele e a loirinha começaram a brigar pra valer (porque ele adorava discutir e iria ser advogado; e ela era osso duro de roer e estava grávida). Tudo virou um caos. Tinha dias que eles nem se falavam.


                Foi nessa época que eu conheci os dois. E eu era todo problemático e dei um monte de trabalho, mas eles gostaram de mim. Sei lá por que. Eles até voltaram a se falar por minha causa e um dia o cara virou pra mim e disse:


— Acho que eu posso segurar, sim, o mundo na palma da minha mão, tô te segurando, rapaz!


                E eu não entendi nada naquela época, mas eu ri mesmo assim e pedi pra ele trocar de canal porque eu queria assistir desenho. E ele cantava Beatles pra mim toda noite e me disse pra ter cuidado com a filha dos outros.


                Um dia esse cara começou a falar sobre como ele me achava um cara legal e o quanto ele gostava de mim por isso. Disse que sempre iria querer ficar perto de mim e que, se eu precisasse de alguma coisa, era só chamar que ele viria. E que eu sempre poderia ligar para ele, a qualquer hora, pra brigar, pra conversar ou pra perguntar sobre algum CD.


                Eu também não entendi nada na época. Tinha três anos e tudo parecia brincadeirinha. Mas naquele dia não foi de brincadeirinha. O cara saiu para trabalhar, como sempre ia, e a noite eu fiquei esperando para assistir desenho come ele, como sempre ficava.


                Perguntei pra Laís (a mulher que cuidava de mim na época) se ele iria demorar muito pra chegar. Ela disse que não. Estava mentindo. Ele demorou pra voltar e, na verdade, não voltou. E a minha mãe me dizia que iria ficar tudo bem, mas eu não queria que nada ficasse bem, só queria que meu pai voltasse pra casa. Não tinha graça pegar o controle e mudar pro canal de desenhos na hora do jogo do Brasil, se ele não estivesse lá para reclamar. Não tinha graça ouvir Beatles. Nada tinha graça.


                E eu não entendia muita coisa. Não entendia porque tinha que ir aos fins de semana ficar com o meu pai no novo apartamento dele se nós já tínhamos um apartamento e a minha mãe estava lá. Não fazia sentido. Nunca fez.


                Mas eu cresci e entendi algumas coisas. E dei muito trabalho no processo. Mas o cara cumpriu a promessa: ele sempre está lá do outro lado da linha quando preciso. E às vezes ele enche o saco quando se mete demais na minha vida. Mas eu sei que ele só faz isso porque quer que eu siga por um caminho melhor do que o dele — um com menos dificuldades e tudo mais, acho.


                E ele uma vez me disse que nunca se arrependeu de ter voltado para casa e ter sido meu pai. Disse que eu fui uma das melhores pessoas que ele conheceu. Eu e os Beatles.




                No fim da história, o cara se casou com uma morena bonita do trabalho dele. O nome dela é Mari. Ela não leva jeito com crianças, não sabe lavar roupa ou cozinhar, mas é uma boa pessoa. É feminista e também adora discutir, mas ela e esse cara se dão bem.


                A Mari nunca quis ter filhos, mas ela não tem nada contra os enteados. Ela não gosta de criança, então nunca me tratou como criança, nem quando eu era uma criança. Meu pai também nunca fez isso. Eles têm um jeito de educar meio estranho, mas deu certo, acho.


                Se eu quisesse ficar acordado até tarde, sem problemas. Mas eu tinha que levantar junto com eles no dia seguinte e ajudar a Mari a não gastar todo o sabão de uma vez na máquina (porque ela nunca sabe quando a medida está boa) e fazer meus deveres da escola. Tudo era assim. Resumindo, eu poderia fazer tudo o que uma criança queria, mas tinha que assumir a responsabilidade depois — como um adulto. Dureza. Virava um anjo nos fins de semana. Minha mãe não entendia nada.


                E às vezes eu fico pensando em como as coisas seriam se esse cara nunca tivesse levantado a cabeça e visto a loirinha no canto. Será que ele teria ido pra Federal, virado poeta e mudado o mundo? Ou será que, de um jeito ou de outro, ele seria exatamente o que é hoje?


                E a loirinha? Será que ela teria se apaixonado por outro cara que tocasse Legião Urbana? Será que ela não precisaria provar tantas coisas pra um monte de gente tão nova?


                Não sei, cara. Talvez isso acontecesse, talvez não. Mas a história desse cara é essa. Tá certo que eu deixei de fora um monte de coisas, mas a essência é essa daí . Quero desejar pra ele um feliz aniversário e dizer que eu tenho muito orgulho de ser filho dele. E que eu estou feliz por ele ter voltado e ter sido meu pai.





2 comentários:

  1. Ei skatista! Olha eu aqui de novo. Já tava com saudades de você cara. Adorei a história, como sempre, você sempre sabe nos envolver e cativar. A história é linda eu meio que imaginei que fosse seu pai. E não sei porque mas quando cheguei ao final já estava me debruçando em lágrimas. Talvez seja porque tô muito emocional hoje, sei la, sou mulher! Enfim fico feliz que tenha voltado. É muito bom tê-lo de volta. Beijos da garota que adora os skatistas. Não se esqueceu de mim não né? Te cuida cara.

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